Antigamente, quando as pessoas queriam dar um testemunho de que alguma notícia provinha de uma fonte confiável, diziam “deu no Correio”. Nem sempre era verdade, mas o que o Correio do Povo publicava era aceito pela maioria das pessoas no Rio Grande do Sul como um testemunho de fé.
O velho Correio em tamanho standard (jornal sério não podia ser tablóide) morreu há alguns anos e deixou como sucessor uma versão menor, que ninguém mais toma como um testemunho da verdade, até porque nessa sua segunda vida ficou ligado a um grupo religioso, o que sempre conspira contra um apego à realidade factual.
Com isso, o grande jornal do Rio Grande do Sul – ainda que também na forma suspeita de tablóide ( no mundo inteiro, os tablóides são quase sempre jornais pouco sérios) — passou a ser a Zero Hora.
Surgida como um negócio de ocasião, depois que o golpe de 64 fechou a Última Hora (também um tablóide, às vezes muito próximo da imprensa marrom), o jornal de Samuel Wainer que dava cobertura ostensiva ao governo de João Goulart. Zero Hora (na época era nome de uma secção da Última Hora com pequena notícias que chegavam quase no fechamento do jornal) se integrava a um grupo que já tinha uma emissora de rádio e outra de televisão, mas estava longe de formar o grande grupo mediático que se tornou depois.
O chamado Grupo RBS cresceu e tomou conta do mercado do Rio Grande do Sul e Santa Catarina graças a seu apóio aos governos militares que comandaram o Brasil por quase 20 anos e pela aliança estratégica com a Rede Globo, também produto da ditadura.
Hoje, fortalecido pela presença em praticamente todas as plataformas de mídia e fazendo negócios também em outras áreas, o grupo RBS se transformou — numa era onde a comunicação é um item fundamental na sustentação de qualquer sistema político — no grande porta voz do conservadorismo gaúcho.
Embora envolto por uma capa de modernidade (todos os seus veículos ostentam o que existe de mais avançado na tecnologia de comunicação) o grupo defende os interesses dos segmentos retrógrados da população que mais se empenham em impedir à democratização da sociedade e o fim dos privilégios sociais e econômicos, criados por uma distribuição injusta da renda, o financiamento pelo Estado de grandes empresas e a falta de acesso da população marginalizada à educação e à saúde.
Embora estejamos vivendo numa época em que os meios audiovisuais sejam dominantes no dia a dia das pessoas, o jornal ainda tem um forte apelo junto aos cidadãos como um registro documentado dos fatos. Colocadas em letra de forma (embora a elaboração dos jornais hoje siga outro processo), certos fatos e opiniões ganham uma importância que nos outros meios de comunicação ainda não têm
A televisão e o rádio apresentam um fato com toda a dramaticidade que só o uso da imagem e do som consegue transmitir e o jornal depois explica as causas e conseqüências do fato, ajudando as pessoas a fazerem um juízo de valor.
Um grupo que disponha desses três veículos, como é o caso da RBS, está sempre multiplicando a força da sua mensagem.
Num ano eleitoral, a presença do jornal dentro do contexto geral dos meios de comunicação, cresce da importância, na medida em que a televisão e o rádio por serem concessões do Governo Federal, sofrem determinadas limitações.
Nesse ano de 2014, ano eleitoral de importância extrema para o Brasil, porque as forças de oposição vão usar todas as suas armas para impedir que o PT consiga completar seu quarto mandato na Presidência, igualando o que foi o sonho de FHC (o PSDB veio para ficar 20 anos no poder, dizia Sérgio Motta, o Sergião), Zero Hora vai desempenhar um papel importantíssimo no jogo político tanto estadual como nacional.
Não nos iludamos. Apesar de se declarar imparcial, o jornal vai usar todos seus recursos, que não são poucos, para valorizar os candidatos que defendem sua linha política. É possível que use novamente aquele argumento que utilizou no passado, de medir os centímetros de coluna com notícias de cada candidato para provar sua presumida isenção, como se o fato de ter a mesmo tamanho tivesse esse significado.
Zero Hora talvez seja o modelo mais acabado do uso de estratégias de marketing para “vender” essa idéia de isenção política, de um espaço aberto para todas as tendências, em toda a imprensa brasileira. No passado, eles chegaram a realizar uma campanha publicitária, onde pessoas conhecidas do meio intelectual e universitário davam testemunhos criticando a postura do jornal, junto com outras que a enalteciam. Zero Hora publicou em páginas inteiras cada um desses depoimentos, para tentar provar essa pretensa imparcialidade.
Hoje, basta dar uma passada na longa lista de colaboradores do jornal, alguns permanentes e outros eventuais, para encontrar nomes que cobrem praticamente todo o espectro ideológico do Estado. Numa mesma edição é possível ler o texto sempre magnífico do Luís Fernando Veríssimo e o tosco populismo do Paulo Santana; encontrar um radical de direita, como Percival Puggina e um defensor dos direitos humanos, como Marcos Rolim, isso na mesma página; um defensor do golpe de 64, Paulo Brossard e uma das vítimas desse golpe, Flávio Tavares; uma cobertura internacional quase sempre isenta de Luiz Antônio Araújo à crítica comprometida com o anti-socialismo de Léo Gerchmann.
Enquanto os colaboradores reforçam a idéia de uma diversidade política, a linha editorial do jornal vai martelando na cabeça dos seus leitores os valores da classe conservadora, mesmo que na essência eles sejam alheios aos interesses da maioria da população. Eles não são muitos, mas são fundamentais para os objetivos que o jornal, como integrante da elite econômica , defende: ampla liberdade formal (principalmente para fazer negócios), meritocracia em qualquer atividade, independentemente das condições sociais dos seus participantes e presença mínima do Estado em qualquer atividade.
Uma única exceção é a segurança pública, onde se clama diariamente por uma maior presença de policiais e presídios, porque certamente ela afeta o bem maior da sociedade capitalista, o patrimônio das empresas e por extensão, das pessoas.
A estes valores exponenciais que é preciso defender a qualquer custo, Zero Hora se dedica ainda a outras prioridades em sua linha editorial: critica permanente (muitas vezes justa) aos governos do PT; demonização dos movimentos sociais, principalmente os ativistas do MST; repulsa permanente ao aumento da liberdade de informação com o advento do controle social da mídia e finalmente, a defesa incondicional da política do governo de Israel contra os palestinos.
Fiel a essa política, o jornal vai tentar eleger sua ex-funcionária Ana Amélia Lemos governadora do Estado, como já fez com outros dois ex-funcionários (Antônio Britto e Yeda Crusius). Já teve um senador, Sérgio Zambiasi e vai tentar eleger outro, Lasier Martins.
Mesmo que o PT vença no plano federal, o que é quase certo e no plano estadual, o que é bem provável, os governos de Dilma e Tarso certamente não afrontarão, como não fizeram até agora, os objetivos políticos e sociais que o grupo da RBS representa e divulga em seus veículos, até mesmo porque, para garantir a estabilidade dos seus governos, continuarão a fazer as concessões políticas e econômicas que interessa aos setores que o grupo representa.
Aqui no Sul, temos ainda bem presente, o que significa contrariar diretamente os objetivos dos parceiros econômicos do Grupo RBS. O governo Olívio Dutra, possivelmente o que mais avançou nessa linha de confronto com estes interesses, sofreu um processo de desestabilização permanente, com uma guerra comandada pelo grupo da RBS, que deu sustentação mediática para a chamada “CPI do jogo do bicho”; que transformou o embate político de um governo, que tentava preservar o dinheiro público, com a multinacional Ford, numa manchete mentirosa, repetida mil vezes, de que o PT mandou a Ford embora; e que diariamente apresentava o Estado como se vivesse na mais completa insegurança pública. Era o “o caos na segurança” como dizia o jornal, juntando na mesma matéria todos os casos policiais do dia para ampliar a repercussão das notícias e que terminou, como por encanto, no dia seguinte à eleição de Germano Rigotto.
Vamos continuar lendo Zero Hora e democraticamente, vamos continuar a denunciar seu papel na política do nosso Estado e do nosso País.
Marino Boeira - Formado em História pela UFRGS. Jornalista e publicitário. Ex-professor de disciplinas da área de Comunicação na PUCRS e Unisinos. Publicou três livros de ficção: De Quatro, com outros três autores; Raul, Crime na Madrugada e Tudo que você NÃO deve fazer para ganhar dinheiro na propaganda. É um dos participantes dos livros de memória: Nós e a Legalidade, Salimen, uma história escrita em cores e Porto Alegre é assim.
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